segunda-feira, abril 14, 2008

Desordem do mundo


Perdoa-me o leitor diser-lhe uma banalidade tão grande: o mundo está descontente. Estão descontentes os países; os indivíduos entre si; descontentes os indivíduos consigos mesmos. O mundo é uma grande casa em desordem, onde todos se sentem com o direito de gritar. Os que gritam não se entendem; e os poucos que saberiam falar proveitosamente, como poderão ser ouvidos, em tamanha confusão?

De tal modo cresceu e se generalizou o hábito da queixa e do protesto que os que sofrem em silêncio passam a ser malvistos. Como nas cenas de desastre, o mais atingido ou está morto ou geme baixinho: mas em redor dele a vizinhança vadia comenta, discutee, esbraveja e encontra uma gloriosa vingança em perder tempo com loquacidade.

Todos opinam; o prazer da opinião parece mesmo estar em proporção direta com o desconhecimento do assunto. Por isso, vamos opinar também. E sem nenhum constrangimento, já que estamos em tão boa companhia.

Pois é assim: o mundo está descontente por se achar em desordem, e não o contrário, como poderia pensar o vizinho. A tendência da Natureza, segundo dizem, é para o equilíbrio; se tudo estivesse em seu lugar, o mundo não estaria descontente.

Isto de estar em seu lugar é uma profunda preoculpação dos espíritos sensatos, em qualquer latitude, O inglês diz: "the right man in the rigth place" - e o bom brasileiro, com muito mais saber decorativo, concorda: "cada macaco no seu galho".

Aproveite-se a imagem para uma fábula, e ver-se-á o mundo qual imensa árvore, desdobrada em infinitos galhos - altos, baixos, curtos, longos, finos, grossos -, com os seus povoadores em completa desordem. Dia e noite a vasta fronde oscilará com a celeuma: no mais denso da verdura está precisamente o macaco-poeta, que gosta de mirar as estrelas; num galho desnudo, o macaco-prático, que apenas se interessa pela fruta; num ramo frágil, o macacão pesado, que aspira a certo conforto; muito elevado, o que sofre de vertigens, o que ama o Sol; e às veses , vinte e trinta num pequeno toco, e apenas um num galho colossal...

Mas, deixemos de fábula: o problema de oferecer ao homem a oportunidade que mais lhe convém para aplicação de suas qualidades de trabalho precisa ser encarado de frente, empregando-se todos os recursos obtidos por duas experiências da mesma espécie, além dos recursos particulares que se suponham mais adequados ao caso brasileiro.

É desnecessário insistir com exemplos: o barbeiro que, enquanto escanhota o freguês, vai dizendo: "Eu, se fosse o ministro de Educação..."; a datilógrafa que, entre os seus erros de ortografia, conversa como colega: "Aquele vestidinho de Alice Faye, com três babadinhos do lado de cá, ficava uma graçinha..."; o chefe da seção, rabugento e mal-criado, que não atende aos interessados e ainda responde: "Eu estou aqui porque estou, mas logo que puder vou para a roça, criar minhas galinhas!" -, todos são pessoas adoráveis, mas desajustadas. Talvez dessem, mesmo, um para ministro, outra para costureira, outro para avicultor. Mas foram mal colocados na vida, suspiram pelo que não puderam ser e, com isso, um corta o queixo do freguês, a outra faz uma correspondência detestável para o seu chefe, e o terceiro mete os papéis na gaveta e esconde a chave - sofrem com a sua neurastenia, e fazem sofrer todos que estão ao seu alcance.

Ora, quem os colocou mal na vida? Contingências da fortuna, falta de previsão dos pais ou professores - mas, sobretudo, o desconhecimento ou desprezo, do ponto de vista individual e psicológico, do problema da "vocação"; e, do ponto de vista técnico e social, do problema da "orientação profissional".

O antigo "conhece-te a ti mesmo" ainda tem aqui a sua aplicação. É pelo conhecimento de suas aptidões, das várias maneiras de combiná-las, que um jovem se pode situar na vida, entregando-se a uma atividade que ao mesmo tempo o satisfaça - por estar de acordo com a sua capacidade - e lhe permita viver dentro de um nível condigno - por estar de acordo com as oportunidades sociais, tendo, portanto, uma valorização razoável.

Mas os jovens não poderão, salvo em casos excepcionais, chegar a essa compreensão por si mesmo. Falta-lhes esperiência. falta-lhes conhecimento especializado do assunto, e - o que é mais grave - em muitos não se encontram nem entusiasmo, nem confiança, nem paciência, nem fé. Estes são os que precisam ser socorridos imediatamentepor educadores competentes, compreensivos, que queiram fazer alguma coisa neste mundo descontente, para uma gereção abalada por tantos espetáculos atrozes.
[Cecília meireles]

2 comentários:

Anônimo disse...

Ma-ra-vi-lho-so!

até

Anônimo disse...

nossa... significativamente crítico.
em relação ao tema, não comungo da idéia de que todos tem a oportunidade de desfrutar o "conhece-te a ti mesmo", acredito que quando muito é permitido "gostar do que faz, mesmo sem fazer o que gosta"