sexta-feira, novembro 12, 2010

Quatro Olhos - parte I


Felicidade é ter espelhos tortos, muito tortos, que te mostram convenientemente distorcido em diversas facetas bem reais em todo o seu surrealismo. Surrealismo era existir. Surrealismo era a própria felicidade vermelha em espelhos tortos.

E assim ele era uma pessoa feliz! Com poucos e despretensiosos sonhos. E talvez por isso fosse feliz. Ou talvez por isso não parecesse feliz. Ou talvez fosse a coluna torta e o gosto pelo tempo que o faziam assim: feliz e infeliz em espelhos desiguais nos quais se via uma coluna ereta e um tempo refratado em logos anos claros.

Mas o surrealismo prestava-se ao expressionismo em sua retina. A felicidade vermelha dos dias claros era verde-amarelo-azulada na íris dos seus olhos.

Sim, tinha olhos patriotas. Mas sua pátria era o quintal daquela casa, onde o amarelo, o verde e o azul se misturavam à paisagem bucólica e tridimensional que seus olhos viam debaixo da grande árvore quase morta do extremo leste da propriedade.

Fisicamente, quase morta a infância daquele menino... Mas seus olhos não tinham idade, eram olhos sem tempo.

E eles, os olhos, carregados por seu dono, rotineiramente pedalavam nas estreitíssimas estradas de terra com estacas em preto-e-branco. As brancas do lado esquerdo eram a ida, quando os olhos voltavam-se para o céu e os ouvidos ouviam qualquer música que falasse de calma. Enquanto as estacas pretas eram a volta e os pés eram só velocidade; os olhos quase se fechavam para que os braços sentissem o banho de vento costumeiro.

Mas aquele dia pedia mais vento, mais céu, mais tempo. E a vida pedia mais vida. Pedalou-se então por estradas distantes onde só existia céu e mais nada.

E bem no meio das nuvens eis que a corrente sai das engrenagens que movimentavam as rodas da bicicleta: uma quase queda.

A bicicleta era do avô e estava velha. Mas era verde e quase cantava relembrando os tempos em que era nova e pedalava com o verdadeiro dono. E ele, o neto e atual passageiro, não se importava que fosse velha, nem se importaria se fosse incolor. Na verdade tinha afeição a coisas de outras épocas, que lhe lembravam os desejos que nunca tivera com lembranças do que nunca acontecera – E o que lhes conto é quase uma verdade, e não o contaria se assim não fosse.

Ele que por enquanto não tem nome estava em uma estrada de céu com uma casa sem telhado ao longe, uns coqueiros muito longe, e a casa de uma velha conhecida em alguma nuvem que não se podia ver. Não diria se não fosse: ele sentiu alguma coisa quando pensou na possibilidade de ao consertar a bicicleta pedalar ate a casa da moça e trocar algumas frases.

Sujou as mãos com a graxa da corrente, que não tinha culpa de ter saído de seu lugar, estava cansada de rodar pelo tempo nas ladeiras daquele azul.

Não tinha relógio, mas se tivesse diria que passaram algumas horas, ou talvez por não ter relógio eram horas no plural.

A cidade de onde vinha era muito mais longe do que o lugar de onde partira com a bicicleta verde. E a cidade não o ensinara como consertar bicicletas emborcadas no sem-nome daquele espaço.

Mas ele conseguiu. E pedalou pela casa sem teto, pelos coqueiros sem dono da curva e seguiu. Fazia muito sol. Devia passar das onze. Perdia muita água por entre os poros, mas ganhava fôlego que quase pode ser chamado de liberdade-do-que-fiz-escondido(Aquele lugar era um tanto esquisito, e ninguém o deixaria ter vindo se pedisse).

E com o pudor escondido, chegou na nuvem onde ela morava, perguntou aos vizinhos qual a casa.
Era amarela e tinha portões enferrujados, no quintal uma plantação de mandioca, e na cadeira de balanço uma velha de lenço na cabeça.

Entrou na casa por insistência da mulher. Ela tinha mãos muito boas e negras e olhos muito atentos e enrugados que ao perceberem as mãos sujas de graxa do menino, trouxeram logo um sabonete e uma toalha muito grande. A bacia de alumínio com a água do poço pediam desculpas: os canos não conduziam água para o céu fazia alguns dias de modo que as torneiras estavam de férias como o rapaz.

Então ele agradeceu e aceitou também um copo de qualquer coisa líquida. Quando perguntou por quem procurava, a velhinha que depois ficou sabendo ser a avó legítima da menina, disse que ela tinha ido para a terra onde emana leite e mel, que não ficava muito longe dali.

Ele então agradeceu mais uma vez, e a velha lhe sorriu um sorriso muito singelo cheio de dentes brancos, mas sobretudo, cheio de sinceridade - que para ele tinha vários nomes; naquela hora, porém decidiu chamar de humildade, mas no álbum de fotografias mentais preferiu chamar apenas de sorriso.

Com a bicicleta mais uma vez a pedalar, rumou-se para a terra das promessas, que era mais desenvolvida que ali e tinha a promessa da mágica internet: Não se sabia para que servia mas sabia que era preciso.
Ele desceu as ladeiras do céu – essa terra era muito mais embaixo. Desceu mais um pouco, cruzou uma rodovia cheia de rodas e de cargas e chegou.

Mas não tinha moça, não tinha nada. Era meio dia e meio dia não tinha nada, nem meio nada que é pouco tudo.

E então pedalou com o estômago de volta para os quintais de onde partira inicialmente. Não seria hoje que veria a menina-sol cheia de sardas, de cabelos loiros cheios de dúvidas, de palavras doces cheias do que sempre procurou: paciência. Não seria hoje que veria a dona Simplicidade.